Sexta-feira, 11 de Janeiro de 2008

O Sebo

Pouco maior que uma quitanda e quase tão sujo quanto uma peixaria malcuidada, este estabelecimento comercial não deixa de ter seu encantamento, sua poesia.

Todo o mobiliário se resume a uma escrivaninha em que o proprietário faz suas anotações, duas cadeiras ordinárias e montanhas de livros espalhadas pelo meio da loja, empilhadas pelos cantos, que sobem pelas paredes formando uma decoração caótica e complicada. Em todos os montes são desrespeitados os princípios mais elementares do equilíbrio e vê-se claramente que não há a menor preocupação com a estética. Aliás, não é mesmo possível adotar qualquer ordem de arrumação, pois os volumes, cada um diferente do outro em tamanho, cor e forma, não permitem tal luxo.

E há um certo aroma no ar! Sim, pois assim como uma quitanda ou uma peixaria tem seus cheiros característicos, esta loja também tem o seu: é um cheiro de mofo, de poeira misturada com nicotina e papel velho. Pode ser que seja o inferno para os asmáticos, mas conheço muitas pessoas que adoram essa mescla de estranhos perfumes... Entre elas há até as que dizem que esse é o cheiro da verdadeira intelectualidade.

Estamos num sebo, numa loja de livros usados, de segunda ou mesmo de enésima mão.
Já pela simples disposição das mercadorias, vemos que é absolutamente impraticável toda e qualquer operação de limpeza.

Faxina, então, nem pensar! Imaginem ter de levar tudo aquilo parra algum lugar para se poder passar um pano no chão! Varrer, apenas varrer, já é uma tarefa complicada e arriscada, pois seria muito fácil misturar com o lixo diversos opúsculos e livretos que jazem pelo assoalho em completa intimidade com pontas de cigarro, papéis de bala, palitos de fósforos queimados e muitas outras coisas ainda bem menos nobres e poéticas. Isso, é claro, sem falar do perigo de se esbarrar numa avultada pilha de enciclopédias, mal equilibrada sobre um dicionário, e causar um monumental desastre... Há até o risco de morte. A morte sob o peso do conhecimento!

Encontrar, especificamente, uma obra ali? Tarefa totalmente impossível. Nessa loja, compra-se aquilo que o acaso faz cair nas mãos. Lobato está ao lado de Eça que, por suas vez, está por cima de Montaigne, que, inexplicavelmente, está apoiado em Rousseau — que se encontra frente a frente com Byron. O positivismo se avizinha do tomismo e Kant se deixa montar por Sartre e por Baudelaire. James Joyce disputa um instável lugar com Hemingway, enquanto Jorge Amado e Simone de Beauviur empurram Thomas Mann para uma posição perigosa.

Sorrindo, vemos que inimigos mortais em vida se encontram agora lado a lado, deitados juntos, placidamente instalados. Talvez em seus túmulos, eles estejam remexendo, cheios de revolta...
publicado por Jose Alpoim às 05:08
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Quinta-feira, 6 de Setembro de 2007

O Crime da Beleza

Ruben Braga começou uma de suas crônicas assim: “Vovô vê a uva... Eu vejo a viúva”.
A diferença é que eu não vejo viúva nenhuma, minha atenção se concentra e se desvanece vendo a uva. Uma uvinha linda – minha netinha, hoje com quatro anos de idade.

Concomitantemente, salta-me aos olhos, através de um noticiário na televisão, a imagem de uma outra uva, esta com treze anos de existência. E fico pensando, preocupado, se daqui a parcos nove anos minha neta também estará assim.

Creio que não. Por mais que o modus criandi que minha filha usa para moldar a menina seja diferente – às vezes até mesmo antagônico – daqueles que nós, seus pais, lançamos mão para formá-la, acho que à minha neta jamais seria permitido chegar a tal absurdo.

Sim, absurdo, pois a menina que ali na telinha diz que tem apenas treze anos de idade, aparenta pelo menos vinte e três.

A. B. – vamos identificá-la assim, apenas com as iniciais, uma vez que não é nosso desejo infringir a Lei e esta diz que menores de idade envolvidos em alguma espécie de infração, não podem ter seu nome divulgado a não ser por suas iniciais – é, inegavelmente, linda. Possui um rosto de linhas puras, um corpo bem feito – talvez magro demais, para o meu gosto – cabelos bonitos, é elegante... Tem tudo para ser uma modelo de sucesso como, aliás, o é.

A. B. é a representação concreta do sonho da imensa maioria de nossas adolescentes: ela é uma modelo profissional com a agenda cheia e iluminada pelos holofotes da mídia especializada.

Quando ela começa a responder às perguntas do entrevistador, temos mais uma surpresa: sua voz, seu modo de falar, a lógica das respostas, a desinibição, a maturidade e a calma de A. B. em hipótese alguma condizem com a sua idade cronológica.

À luz do mais rudimentar conhecimento sobre a evolução individual de uma pessoa, percebe-se nitidamente que essa menina foi exaustivamente trabalhada do ponto de vista psicológico para que pudesse mostrar – ao menos nessa entrevista – que está muito mais madura até mesmo do que muitas mulheres já adultas. Olhando-a e ouvindo-a falar, esquecemos por completo de seus treze anos de vida... Ali está uma mulher e não uma menina!

Enquanto ela é entrevistada, a produção do telejornal passa algumas imagens de A. B. desfilando. Ela está usando – nessa imagem que mais se fixou à minha memória – um vestido bem decotado e que deixa entrever seios grandes, completamente dissonantes com o corpo de uma adolescente mal entrada na puberdade. A velha, ultrapassada e já comprovadamente errônea teoria afirmando que as brasileiras, por causa do clima tropical ou sub-tropical, teriam um desenvolvimento somático mais rápido do que as européias ou mesmo norte-americanas não é suficiente para explicar tamanha opulência. E, então, ela confessa que fez uma prótese de silicone. Cento e oitenta mililitros de cada lado... Argumenta que tal procedimento tinha sido necessário, uma vez que seus seios eram pequenos demais.

Esqueceu-se A. B. – bem como seus pais – que a Natureza não prevê para o desenvolvimento físico de uma menina de treze anos de idade, seios tão volumosos, mesmo porque sua coluna vertebral ainda não está desenvolvida a ponto de suportar esse peso.

A pergunta bate-me, de chofre: qual foi o médico que aceitou fazer essa cirurgia, sabendo que estaria infringindo não apenas a lei dos homens, mas uma lei muito mais sábia que é a da própria Natureza? Não pode ter sido um incompetente qualquer, tanto que se pode notar o chamado sucesso cirúrgico, ou seja, o médico obteve plenamente o resultado pretendido.

Então vem a triste certeza: não teria existido outro motivo para a realização dessa cirurgia que não o dinheiro. Assim como também foi o dinheiro – muito bem amparado pelos alicerces de uma situação a que se denomina fama – que motivou os pais de A. B. a permitirem que se lhe tenha sido arrancada a infância e a adolescência como num passe de mágica: hoje, você é uma menina; amanhã será uma mulher, sendo que esse amanhã é realmente amanhã, apenas vinte e quatro horas depois e não um amanhã metafórico, que sugere todo um futuro, décadas, talvez um lustro para a frente.
Neste momento, A. B. está afirmando estar consciente de que a carreira de modelo tem curtíssima duração e que já está se preparando para a aposentadoria – provavelmente compulsória – aos vinte e poucos anos de idade.

Reflito: A. B. perdeu a infância e a adolescência preparando-se arduamente para brilhar nas passarelas; e um erro estratégico, uma malandragem por parte das pessoas que se encarregaram de administrar o dinheiro que ela ganhou, pode decretar que ela também perca não apenas a mocidade, mas a vida toda. Aliás, somaticamente, ela já está perdendo pelo menos dez anos de vida, já que foi envelhecida de propósito prematuramente. Com treze anos, ela aparenta pelo menos vinte e três...

Minha atenção retorna ao vídeo e vejo-escuto a menina dizer que tinha sido obrigada – por causa dos incontáveis compromissos profissionais – a abandonar os estudos na sétima série. Voltará ela à escola depois, quando se aposentar? Tenho toda a liberdade de pensar: duvido.

Faz-se um verdadeiro escândalo de mídia quando se fala de casos de meninos-carvoeiros, meninos-mulas carregando fardos pesadíssimo de erva mate, de flanelinhas explorados por adultos nos semáforos das grandes cidades. Diz-se alto e a bom som que lugar de criança é na escola. O governo chega a fazer – e a mal executar – projetos de acréscimo – ridículo – de renda familiar para possibilitar crianças a deixarem de trabalhar para poderem se dedicar aos estudos. São crianças pobres, de famílias pobres, com sonhos mais chãos...

Mas ninguém fala – pelo menos de forma suficientemente clara – a respeito dessas meninas, boa parte delas vindas de famílias de classe média, que trabalham muitas vezes incomparavelmente mais do que qualquer menino-carvoeiro, por exemplo, na perseguição do sucesso e da fama nas passarelas. E, evidentemente, na perseguição dos gordos lucros monetários que a posição de top model pode auferir.

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, a profissão de modelo, para qualquer dessas meninas, é contrária ao que ditam os incisos I e II do artigo 63, que onde fica expressa a garantia de acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular e atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente. O mesmo Estatuto estabelece como crime o fato de adultos obrigarem crianças a trabalhar.

Portanto, no caso de nossas tão jovens modelos, estão sendo cometidos – assim a olhos vistos – pelo menos dois crimes: o afastamento das meninas dos bancos escolares e a exploração do trabalho infantil, crime este em que seriam réus os agentes e os pais da modelo.

Pensando mais um pouco, encontro mais criminosos: o médico que lhe implantou próteses de silicone, o nutricionista que lhe estabeleceu uma dieta magra, tão magra que no máximo lhe permite a sobrevivência, os fotógrafos que não se inibem de fotografar sua nudez – e isso poderia ser catalogado como crime de corrupção de menor – o psicólogo que lhe enfiou na mente uma auto-estima que ela ainda não está preparada para assumir e a própria mídia, que divulga e exalta uma menina que, aos treze anos, tem corpo, cabeça e trabalho de uma mulher no mínimo dez anos mais velha.

A modelo, esta, não tem culpa nenhuma. Ela é a vítima típica, aquela que sofre em virtude da ambição material de pais, agentes, médicos, nutrólogos, fotógrafos, repórteres e todos mais que, em função da assincronia idade-função-trabalho da modelo, ganham verdadeiros rios de dinheiro.

É mais do que natural que uma menina, desde muito cedo, tenha como ídolo qualquer uma dessas modelos lindíssimas que diariamente estão na telinha. O que não pode ser considerado como natural é o fato de essa menina ser excessivamente estimulada a se tornar uma delas. Pior ainda: os pais dessa menina – principalmente a mãe – fazer de tudo para que ela assim o seja. Isso implica no desprezo da base fisiológica da vítima, vale dizer que inúmeras vezes os adultos que a cercam fazem questão de fechar os olhos às evidências mais simples, tais como o biótipo da menina, e forçam-na a ser fisicamente algo que a Natureza, já em seu código genético, impedira-a de ser. Crime de lesão corporal grave, com dolo?

Escuto um toc-toc meio dissonante e descompassado às minhas costas e vejo – com um arrepio de terror – minha netinha aparecer calçando os sapatos altos de sua mãe.

Penso um pouco antes de responder afirmativamente à sua pergunta vovô, estou bonita? E estremeço quando ela dá uma volta sobre si mesma – quase caindo dos saltos, é verdade – e diz: Quando eu crescer, vou ser como a Gisele Bündchen!

Assim espero, minha uvinha... Assim espero. Mas, veja bem, somente quando você crescer.
Quando terminar de crescer!
publicado por Jose Alpoim às 19:18
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Sobre o Livro Ninguém para me acompanhar, de Nadine Gordimer

Vera Stark, advogada de uma fundação sul-africana cujo objetivo era garantir o acesso dos negros à terra, é a protagonista desta formidável obra de Nadine Gordimer. Sem dúvida, Ninguém para me acompanhar, é um grande romance. Aliás, não se poderia esperar menos desta autora, natural de Springs, na África do Sul, e Prêmio Nobel de Literatura em 1991. Na época em que o regime do apartheid ainda domina a África do Sul, Vera Stark vive as emoções de lutas políticas, de perseguições e de injustiças. Frente a frente com negros e brancos — cada qual defendendo o mais bravamente possível seus pontos de vista e seus interesses — a competente advogada se vê envolvida com funcionários públicos incompetentes e relapsos, com brancos que não conseguem admitir a evolução dos tempos e dos costumes e, principalmente, consigo mesma, confrontando o trabalho que desenvolve e sua vida familiar. A autora aborda com muita propriedade temas até mesmo já muito batidos sobre a segregação racial e o racismo propriamente dito, vigentes não apenas naquele país, mas em todo o mundo. E, para surpresa de todos, Nadine Gordimer mostra a faceta humana — evidentemente cheia de falhas — de todos os personagens que povoam sua obra. Assim, a própria Vera Stark, por seu comportamento e atitudes, não esconde em momento algum o alto grau de egoísmo que possui. Está certo que ela trabalha por uma nobre causa, dedica-se ao extremo, até mesmo extrapola suas obrigações em muitas oportunidades — numa delas, chega a ser baleada — mas tudo isso é apenas conseqüência do que ela mesma se propôs a fazer. Tanto está trabalhando pelos negros e pela conquista de seus direitos, quanto poderia estar trabalhando com o mesmo ímpeto e a mesma dedicação, numa empresa de seguros contra incêndios. Falta-lhe o idealismo quase que religioso que tão bem caracteriza os que realmente se dedicam a uma causa, como se fosse a razão única de sua vida. A razão única da vida de Vera Stark parece ser tão-somente a sua realização profissional, a consciência de ter feito bem o seu trabalho, de não ser obrigada a escutar críticas de espécie nenhuma. Ou seja, falta-lhe viver com a alma os problemas dos negros que a procuram na Fundação, ao invés de vivenciá-los como uma autêntica burocrata o faz. Está aí a grande diferença entre ela e um de seus amigos, Didymus, ex-exilado e verdadeiro idealista — ou pelo menos o foi, durante o tempo em que se viu perseguido e ameaçado — dedicado apenas à libertação de seu povo, ainda que essa dedicação não conseguisse ser convenientemente dogmatizada ou normatizada. A esposa de Didymus, uma negra bonita e desempenada chamada Sibongile, é utilizada pela autora para exemplificar o fenômeno da subida à cabeça, ou seja, a embriaguez do poder e da própria glória. Sibongile, negra e sofrida durante os tempos de exílio, acaba por sofrer a influência da cultura européia branca e passa a ser exigente: não se adapta mais às condições de vida de seu povo quando de seu retorno à África do Sul, quer que a filha, Mpho, receba educação em nível de Primeiro Mundo, quer mostrar que é mais do que qualquer outro. Está certo que todos deveriam ter esses direitos, mas também é certo que não se sai da submissão para o domínio, sem sacrifícios ou mesmo, sem uma convulsão social e violência. E há violência no livro de Nadine Gordimer. Em doses certas, nos momentos certos, violência descrita com o cuidado de evitar o exagero. Tanto cuidado que a autora deixa de resolver a personagem Sibongile, posta numa lista negra da direita conservadora branca, deixando o leitor sem saber o que, afinal de contas, aconteceu com ela. O mesmo cuidado em poupar o leitor da violência sangrenta, Nadine Gordimer não tem com o que se refere a sexo. O livro é recheado de sexo — muitas vezes quase explícito — do começo ao fim. Há um componente de provável arrependimento por parte de Vera Stark por ter se divorciado muito jovem, arrependimento este que se pressente quando ela tem uma aventura amorosa com um alemão mais jovem. Nadine, certamente, quis mostrar que seus personagens são, de fato, pessoas normais, iguais a quaisquer outras, portanto sujeitas às fraquezas e aos problemas de todos os mortais comuns. Dessa maneira, Vera Stark se vê às voltas com o divórcio do filho, com o lesbianismo da filha e com o excesso de juventude — não apenas excessos da juventude — do neto. A advogada nutre um sentimento de profunda admiração, talvez até mesmo um amor platônico, amor não resolvido, por Zeph Rapulana, líder de uma township e que se transforma numa importante figura envolvida com a nacionalização de bancos e financeiras. Zeph é uma espécie de guru de Vera Stark, um sábio, quase um avatar, capaz de aconselhá-la e até mesmo de ditar regras e normas, mostrar caminhos e soluções. Vera acaba deixando o marido — o segundo, pai de seus filhos — para viver praticamente sob o teto de Zeph. Porém, não há aí nenhuma conotação sexual, ao menos do ponto de vista consciente por parte da advogada: ela apenas sente a necessidade de compartilhar com alguém sua dedicação ao trabalho, faceta de sua personalidade que, aparentemente, não tinha sido compreendida por seus familiares. E o empowerment acaba fazendo com que Rapulana passe a fazer parte do mesmo nível social de Vera, com direito a freqüentar plenamente e com segurança, a sociedade dos brancos. A autora enfoca magistralmente — e sem cansar o leitor — as manobras políticas dos brancos para provar que os negros, ainda que detendo parte significativa do poder, não terão jamais possibilidade de se desenvolver. Uma das maneiras é possibilitar acesso, por exemplo, ao controle financeiro, mas sem lhes proporcionar o know-how necessário. O fracasso, inevitável, é tomado por incompetência absoluta. Diga-se de passagem que esta é uma manobra de política suja que, de maneira nenhuma, pode ser considerada como exclusividade da África do Sul.

publicado por Jose Alpoim às 19:16
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Domingo, 27 de Maio de 2007

JUS ESPERNEANDI

A Justiça dos homens – e muito provavelmente, a desta nossa amada terrinha, em especial – concede ao réu o direito de espernear. Mormente quando se trata de um réu de cheia carteira. É exatamente como na fábula de Lobato, O sapo e o latão de leite, em que um gordo Bufus sp., vai parar dentro de um latão de leite e, persistente, esperneia sem parar e acaba por se salvar porque, com toda a sua movimentação, o leite se transforma em manteiga. Ora, isso só foi possível porque o leite era gordo – portanto, rico – e teve condições de se transformar em manteiga. Fosse o leite ralo, magro, pobre, o sapo teria morrido, o leite jamais se transformando em manteiga.

O réu de rica carteira pode espernear, pode lançar mão do jus esperneandi, pois tem como sustentar os advogados, tem como bancar as custas de um longo processo, de uma seqüência inimaginável de movimentações jurídicas que culminam, indefectivelmente, num prolongamento do tempo de processo e até mesmo a que este venha a terminar quando uma eventual pena já esteja devidamente prescrita.

E isso, é óbvio, sem contar com os incríveis, complicados e demorados meandros processuais que fazem com que o réu venha a ser julgado, a sentença proferida – e depois ou o julgamento é anulado ou a sentença é reformada. O resultado, não importa o que aconteça, é sempre o mesmo: impunidade para os ricos culpados e grade para o pobre, seja este culpado, semi-culpado ou até mesmo inocente.

Está certo, minha senhora e meus senhores... Pelo menos filosoficamente não existe meio culpado, assim como não pode existir uma mulher que esteja meio grávida, ou alguém que seja meio homossexual. Essas coisas, não admitem meio-termo, bem sei. Mas somos obrigados a admitir – não concordam? – que há uma diferença significativa entre aquela mãe pobre (vejam bem que não se trata simplesmente de uma pobre mãe) que rouba um pote de margarina no valor de R$1,50 e o político que mete a mão em um milhão e meio de reais... E o engraçado é que este último não vai parar atrás das grades, enquanto a mãe pobre fica meses mofando numa cadeia imunda.

Mas citei como exemplo de desonesto rico um político qualquer e cometo, com isso, uma injustiça. Temos a esperança de que nem todo político seja desonesto, criminoso. É bem verdade que seria preciso procurar com uma lanterna, tal como Diógenes... Mas deve existir. Impossível que toda a política esteja tomada por bandidos de gravata!

Acho que eu seria um pouco mais justo se mencionasse, também como exemplo de impunidade, os bandidos que já estão atrás das grades e que, mesmo assim, lá de dentro dos presídios devidamente transformados em escritórios administrativos do crime, continuam a gerenciar suas atividades, a ganhar rios de dinheiro e, graças a sólidas e imensas fortunas, seguem comprando desde carcereiros até desembargadores, passando por toda a escala cromática da hierarquia judiciária.

E isso sem levar em conta a palhaçada caríssima de se transportar criminosos de Catanduvas para o Rio de Janeiro, por causa de uma audiência. E o transporte é feito num jato executivo! Provavelmente com lanchinho a bordo, e isso se não houver o privilégio de um drinque. Importado, é óbvio.

E lá vai Fernandinho voando luxuosamente para o Fórum... E lá vem Fernandinho de volta para seu apê em Catanduvas... E nós, pagando, é claro.

Não tinha sido autorizado o sistema de julgamentos através de vídeo-conferência? E a troco dequê o raio do julgamento foi adiado? E onde será que Fernandinho vai esperar pela nova data? Será que numa suíte presidencial do Copa? Dinheiro para isso ele tem, se quisesse e pudesse optar. Mas para quê? O governo, com certeza, há de lhe proporcionar acomodações confortabilíssimas e... muito mais seguras e garantidas do que em qualquer cinco estrelas!

Enquanto isso, a mãe pobre mofa num depósito de presos. Cria bolor e revolta. O defensor público, se é que houve um, mal leu o processo, deixou que as coisas corressem. O juiz que deu a sentença – ou que simplesmente foi protelando o andamento do processo, por ser algo de pequena monta e que não haveria de gerar qualquer tipo de benefício – nem se deu o trabalho de analisar motivos, razões, situações. Ela roubou? Há de pagar! E fecha o processo, apressado, para atender o telefonema do advogado de um traficante de peso, dono de cinco casas de bingo, advogado este com quem se encontrou no jantar da véspera, durante o qual recebeu um envelope pardo e pesado, para lhe dizer que sossegasse, que até o fim do dia o seu cliente estaria em liberdade.

Ou seja, gozando em toda a plenitude a Impunidade.

publicado por Jose Alpoim às 11:58
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Sábado, 26 de Maio de 2007

Não vai sobrar ninguém

Por que será que não nos surpreendemos mais com essas notícias que vêm de Brasília? A cada dia que passa é uma novidade... E novidades que, em outros países, especialmente ao norte do Equador, seriam suficientes para, no mínimo, causar renúncias de cargos, demissões e – conforme o caso – até mesmo suicídios.

Mas aqui nesta terrinha abençoada por um Deus que se faz representar por Herr Hatzinger (daí, talvez, a certeza de sua falibilidade), as novidades acontecem, as denúncias surgem, há uma certa agitação – para inglês ver – e, assim que a poeira assenta, tudo volta ao status quo ante. Nada acontece, tudo continua absolutamente igual. Apenas nossos políticos sujaram-se um pouquinho mais – mas nada que uma boa lavadeira não consiga consertar, especialmente se essa lavadeira já estiver bem treinada numa certa forma muito peculiar de lavagem.

Agora foi a vez do Renan. Ele mesmo, o Calheiros, presidente do Senado. Um homem que deveria ter conduta exemplar, comportamento a servir de modelo.

Mas não... Eis que surge uma filha, uma mulher que o leva à Vara de Família por causa de pensão alimentícia e comprovação de paternidade. Coisas que costumamos ver nos jornais, implicando pessoas de esferas político-sociais bem mais baixas e que, vez por outra, acabam em tragédia.

Aliás, a bem dizer a verdade, a tragédia aí já está: o presidente do Senado envolvido com propinas, presentes inadequados, aventuras extra-conjugais, filha fora-de-hora. Um caso amoroso ainda pode ser perdoável – desde que exista realmente o amor. Não é porque um indivíduo está ocupando a cadeira central da mesa do Senado que ele está livre de se apaixonar, de sentir a necessidade de mudar a vida. Tal fato já ocorreu com tantos... Veja-se o exemplo do Ciro Gomes. Mas ele assumiu. E o caso não foi parar em nenhuma Vara de Família.

Com o Renan foi bem diferente. A prova de que não houve amor está justamente no fato de a mulher envolvida ter de ir parar diante de um Juiz para discutir pensão alimentícia e paternidade. Se amor houvesse, esses detalhes seriam absolutamente supérfluos. Como dizem os advogados, intempestivos, impertinentes e extravagantes.

Outro fator a ser considerado: ao assumir um “rebento”, é no mínimo mais ou menos normal que o pai assuma o seu sustento tirando do próprio bolso as despesas decorrentes da existência de um ser que, de fato, não pediu para vir ao mundo. E o Renan “entregou” a lista dessas despesas para uma empresa... Que certamente não aceitou tal encargo simplesmente pelos belos olhos envidraçados do Senador. Sabemos todos que no mundo dos negócios e da política, não há essa história de ir para a cama por amorzinho... Há pagamento, troca, barganha, escambo. Isso sim.

No episódio Renan, houve apenas um “caso”. Tão fortuito que as conseqüências acabaram por gerar a confusão. E a confusão não é a menina – por sinal, se puxou a mãe, será bem bonita – mas sim a necessidade patológica de seguir errado aquilo que começou torto. Houve o erro – de cálculo, de comunicação, de pontaria – e parece que o implicado na história pensou seguindo a velha norma do “perdido por perdido, perdido e meio”. E isso para ser delicado... Por que gastar o meu dinheiro se é tão simples fazer com que outros gastem por mim? Por que pagar por um ato se outros podem fazê-lo por mim? Na verdade, parece ser esta a sina do brasileiro – o comum, aquele que trabalha e sofre calado, aquele que não foi laureado com um diploma de político e nem deixou um lugar reservado no Inferno – aquele que Herr Hatzinger garantiu que existe para punir as pessoas que andam mal nesta vida – e transformaram-se em empresários ou profissionais corruptos. A sina do brasileiro é pagar para qe outros usufruam. Cinco meses de trabalho por ano só para pagar impostos! E ainda se valesse a pena...!

Mas é isso aí... A julgar pelo que andamos vendo nestes últimos tempos, periga de não sobrar ninguém no Congresso, no Judiciário, no governo.

Mas, como já foi dito antes e até virou título de livro, sempre há esperança.

E a esperança é praticamente uma certeza, pois o Poder Judiciário, num formidável mecanismo de auto-defesa, acabará por absolver todo mundo – ou quase todo mundo, deixando um ou outro Tiradentes ser sacrificado – de forma que sempre sobrará muita gente.

Concomitantemente, o Congresso fará o mesmo.

E nós continuaremos a acreditar no IBGE, no IBOPE, nos índices, nas porcentagens, nas palavras e lágrimas do Presidente... Continuaremos a pagar impostos para assistir ao desgoverno, para ver nossos representantes ganharem fortunas por mês, para ver os três pilares da nossa sociedade – a Segurança, a Educação e a Saúde – esboroarem dia após dia, governo após governo.

E Deus – que disseram ser brasileiro – parece achar graça.
O que não é contraditório, pois nós somos mesmo uma piada. Pena que seja uma piada muito sem graça.

publicado por Jose Alpoim às 08:04
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Sábado, 5 de Maio de 2007

Mais um para ouvir nossas orações

E, talvez por ser um santo fresco, ele possa ter mais acesso ao Todo Poderoso. Mais, por ser um santo tupiniquim, pode ser que entenda melhor nossos problemas e interceda junto à Chefia com os pedidos certos. Como diria Rui Barbosa, “tempestivos, pertinentes e intravagantes”.

Sim, pois os santos a quem estamos acostumados a rezar são europeus em sua maioria e, justamente por isso, a eles não é dado compreender o nosso modo de ver as coisas, a nossa maneira de enxergar o mundo, seus obstáculos e suas exigências. Pode ser, mesmo, que estes santos do Primeiro Mundo, jamais consigam entender que as regras – especialmente aquelas relacionadas com a moral – são completamente diferentes aqui, nesta parte de baixo da Linha do Equador.

Assim, rezemos para Frei Galvão.

Peçamos que ele encaminhe à Direção do Universo um requerimento – obviamente em cinco vias, todas devidamente autenticadas e com firma reconhecida – solicitando que aos nossos homens públicos seja dada a virtude de desviar um pouco os olhos de seus próprios umbigos – nos melhores casos, do umbigo e interesses de seus partidos – e procurem enxergar o povo. Que eles possam perceber que a imensa maioria dos brasileiros vive sem nenhuma perspectiva de um amanhã, vive apenas dia-após-dia, da mão para a boca e tentando sublimar quaisquer preocupações com um futuro, pois este é tão incerto quanto o mar.

Peçamos que aquela fatia de brasileiros encarregados de fazer cumprir a Lei e de manter a Ordem, façam-no com sabedoria, compreensão e – no mínimo – honestidade, para que deixem de acontecer os casos de corrupção da polícia, da administração e até mesmo do judiciário.

Peçamos que os meus ex-coleguinhas – antes vestidos de branco e hoje usando gravatas de fazer inveja a um certo rabino – comecem a lembrar do Juramento de Hipócrates e passem a exercer sua profissão com os olhos e o coração voltados realmente para as necessidades de seus pacientes e não para a saúde de suas contas bancárias. O Sistema de Saúde – e não apenas o Único, que de tão único passou a ser inexistente, mas o sistema como um todo – precisa ser acessível a todos. E com qualidade idêntica para qualquer Silva, seja ele o presidente da república ou o humilde Zé da Silva, gari de uma cidade mínima. Morrer por não poder pagar... Isso também é ser vítima de assassinato.

Peçamos que nossas crianças e nossos jovens possam estudar equanimemente. Quer dizer, em suma, que o ensino seja bom no país inteiro. Que uma escola no interior das Minas Gerais ensine a mesma coisa, da mesma maneira e com a mesma qualidade daquela que se encontra num grande centro.

Peçamos que a polícia – as forças de segurança, de um modo geral – sejam respeitáveis para que possam ser respeitadas. E que deixem de ser motivo de medo tanto quanto o são os bandidos que ela apregoa prender e que, na realidade, não conseguem – ou não querem uma vez que não deve ser muito fácil dar voz de prisão a sócios.

Peçamos que nossos capitães-de-indústria – e o povo todo – abram os olhos para uma consciência mais ecológica, que pensem e admitam que o progresso tem de vir, no mínimo a partir de agora, antes que seja tarde demais, com a utilização de energia limpa e fontes energéticas sustentáveis. Não é possível deixar acontecer o Inferno de Dante ou o Apocalipse simplesmente por ambição desmedida e por falta de visão em relação ao futuro. Em resumo, por mero egoísmo das gerações atuais. Temos de ganhar dinheiro e, se para isso for preciso destruir o mundo, não estaremos mais aí para presenciar o resultado de nossos atos.

Peçamos que o nosso povo tenha mais discernimento na hora de votar, aprendendo a distinguir os bons dos maus, aprendendo a separar o joio do trigo. Principalmente aprendendo a ver as diferenças entre um sapo, uma raposa e um Homem. Assim mesmo, com “H” maiúsculo.

E, por fim, o mais difícil...

Peçamos que o Gerente Supremo capriche um pouco mais na escolha de seus representantes para esta dimensão e não deixe que prossiga a invasão do clero por homossexuais, pederastas, mercenários e indivíduos que conseguem reunir todos – se não a maioria dos – defeitos de fabricação que a Indústria Criativista pôde fabricar.

E, justamente por ser um santo brasileiro, peçamos a ele que, se necessário, faça uso dos artifícios que esta Terra de Cabral tão bem conseguiu desenvolver no correr dos últimos cinco séculos: uma propinazinha pode acelerar as coisas, pode apressar as decisões, especialmente se o sistema judiciário dessa outra dimensão em que ele se encontra seja semelhante à nossa, aqui do Planalto, em que os requerimentos e processos só andam se impulsionados a dólares...
Rezemos, portanto a Frei Galvão... Façamos promessas...

Promessas? Mas será que a promessa a um santo não é uma forma de propina? “Se eu ganhar na Mega-Sena, dou 20% do prêmio para a Igreja...” Isso é propina, minha gente!

Então... Os santos também usam esse sisteminha... Trabalham se impulsionados a promessas.

Mormente em se tratando de um santo tupiniquim.

Mas, a esperança é sempre a última que morre. E enquanto ela estiver agonizando, vamos rezar e fazer promessas.

Depois de ler isso, os prezados e horrorizados amigos poderão pensar que eu me tornei agnóstico. No mínimo, ateu.

Mas não é bem assim.

Pelo menos, quero acreditar num Deus. Um Deus que, como reza a Bíblia Sagrada, é Boníssimo e Justíssimo – destarte não permitindo as desigualdades que grassam neste mundo. Que seja Onisciente e Onipotente – assim, conhecendo as necessidades de Seus filhos e impedindo que estas se transformem em desculpas para a violência e a miséria espiritual. Que saiba escolher Seus ministros e impeça que crianças inocentes e pessoas adultas mal orientadas sejam vítimas de estupros, molestamentos e outros constrangimentos que, de uma forma ou de outra acabarão por deixar marcas nessas pobres almas. Que diga a Seus ministros mais destacados – especialmente a “Herr Hatzinger” que é preciso pensar no progresso da humanidade, na evolução da ciência e, sobretudo, na evolução dos costumes. E que é preciso a Igreja ser coerente: não faz sentido pregar a igualdade, ela mesma fazendo valer tanta desigualdade, fazendo e mostrando a quem quiser ver distinções hierárquicas e materiais que, mais uma vez no mínimo, levam ao descrédito de suas próprias pregações.
E, para aqueles que me conheceram em outros tempos, digo, repito e sublinho: não me tornei comunista, nem mesmo socialista.

Apenas, com o passar dos anos, fui me tornando mais cético. E, talvez, mais sonhador.

Justamente por isso, e apesar de tudo, ainda sonho com a possibilidade de Frei Galvão realmente interceder por este nosso pobre e desamparado Brasil.
publicado por Jose Alpoim às 15:23
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Sábado, 17 de Março de 2007

Rotina matinal

Deitado de bruços, com a cabecinha virada para o lado direito e um dedinho enfiado na boca, o menino dorme.
Um pedaço de fralda se enrosca na mesma mão do dedo que está na boca.
Movimentos de sucção, espaçados e leves, fazem mexer os lábios da criança e a respiração compassada e suave indica que o sono, ainda leve, pode ser rompido a qualquer instante, deflagrando uma incomensurável descarga de energia.
Sorrindo para o filho que começa a dormir, a mãe respira aliviada.
Sorri para si mesma, para o marido que está ao lado.
Recomenda, com um gesto, silêncio.
Olha mais uma vez para o filho, apaga a luz e fecha a porta.
— Parece um anjinho dormindo!
Sim...
Agora que está dormindo, parece mesmo um anjinho. Nada, em sua fisionomiazinha mostra os pouco menos de quinze quilos de dinamite que ali se encontram. Ninguém diria, ao ver esse sono tranquilo, essa respiração sossegada e calma, que até há poucos instantes, o menino não dava um minuto sequer de paz, uma só pausa para respirar.
Com pouco mais de dois anos de idade, caminhando ainda de forma insegura e muito mal articulando as primeiras palavras, já antes das seis horas da manhã estava de pé, na cama, gritando:
— Mamã! Papá! Mamã! Papá!
E, com essa alvorada, dava início a mais um dia de intenso movimento.
A menina que deveria tomar conta do moleque, como sói acontecer a todas, é absolutamente incapaz de resolver qualquer problema, de tomar qualquer atitude ou de, simplesmente, seguir corretamente as recomendações da mãe da criança.
A começar pela fralda suja que nunca é colocada no lugar certo e sempre é esquecida no meio do quarto — isso quando não fica em plena sala ou sobre a mesa de jantar — deixando todo o ambiente carregado com o seu cheiro característico.
Trocado o diabinho, com a roupinha limpa e cheirosa, todo arrumadinho, ele invade o quarto dos pais chamando alegremente pela mãe, obviamente não dando a menor importância ao fato de ela estar com sono, tentando em vão recuperar as horas de repouso perdidas, horas estas a que fora obrigada durante a noite porque, depois de ter comido meia dúzia de bananas verdes, o moleque passara pelo menos metade da noite rolando de dor de barriga. Já na noite anterior, não se explica por quê, ele resolvera brincar em plena madrugada e não houve força de argumento que o convencesse do contrário. Com isso, já eram duas noites seguidas que a pobre mulher dormia mal, acordando ainda mais cansada do que quando fora se deitar.
Com habilidade e carinho, ela consegue tocar para fora do quarto o seu rebento e tenta, novamente, deitar e cochilar.
Não consegue.
Para variar, a pagem não acerta a temperatura do leite na mamadeira, não sabe mais se pôs açúcar ou não, consegue, enfim, fazer o menino chorar, berrar e jogar todo o leite na roupa limpa.
— Mas o que é que está acontecendo? — pergunta a mãe, ainda cozida de sono.
— Nada, não, dona — responde a Mme. Curie — Ele é que não quer mamar...
— Sei disso! — pensa a mãe — Não é que ele não queira mamar... Você é que não tem a menor idéia de como se prepara uma mamadeira! Aliás, você não tem idéia nenhuma sobre assunto nenhum, sua incompetente!
Ela pensa, apenas pensa, a pobre mãe.
Bem que gostaria de poder dizer tudo isso para a pagem mas...
Se é ruim com ela, pior sem ela.
E não está nada fácil encontrar quem queira tomar conta de uma criança. Ainda mais uma criança como aquela, excessivamente viva e esperta...
Juntando o que lhe resta de forças e somando-as ao amor materno, ela se levanta e vai, amorosa, "desfiando fibra por fibra o coração", preparar outra mamadeira e dá-la, ela mesma, para o filho.
É claro que o moleque mama normalmente, esgota a mamadeira bem depressa...
A mãe, forçando um sorriso para a Simone de Beauvoir, fala:
— Agora, você vai me fazer o favor de ir brincar com ele lá no sol, aproveitem que a manhã está tão bonita! E não se esqueça de dar água para o menino de vez em quando!
Voltando para o quarto, encontra o marido já vestido e pronto para ir trabalhar.
— Agora que já acordei, para mal dos meus pecados, o melhor é ir arrumar a casa — diz para ele, com um beijo de despedida.
Não se passam dez minutos e ela escuta aquele grito de dor, grito este que dói muito mais na mãe, do que propriamente a dor que provocou o grito.
O menino entra correndo pela porta da cozinha.
— Que foi? Que foi, meu filho? Conta p'ra mamãe!
Uma longa frase, completamente ininteligível, dita em turco, em russo, chinês ou até mesmo tailandês, em meio a lágrimas, soluços e com um dedinho levantado, seguro pela outra mão, é toda a resposta que consegue.
Vira-se para a Santa Terezinha:
— O que é que aconteceu?
— Sei não, dona... De repente ele começou a chorar e a segurar o dedo. Acho que foi algum bicho que mordeu.
— E você não viu que bicho foi? — pergunta aflita a mãe, já pensando em alguma aranha ou escorpião.
— Vi não, dona — responde a filha de Einstein — Eu não estava olhando para ele...
Inútil tentar descrever o que a pobre mãe sente nessa hora. Pois se a Romy Schneider é paga para vigiar o moleque!
Após muita observação, muita dor de cabeça e preocupação, chega-se à conclusão de que ali onde ele estava brincando não poderia haver nada de mais perigoso do que uma formiga. Assim, o caso é encerrado, o dedinho devidamente medicado com um carinhoso beijo da mãe e o capetinha volta para o jardim acompanhado de seu anjo-da-guarda enquanto a mãe ainda diz:
— Não dói mais, filhinho! Vai andar agora de velocípede!
E, dirigindo-se à Margareth Thatcher:
— Tome cuidado para ele não cair em cima dos espinhos!
A pobre mulher ainda fica observando o filho se afastar correndo, a cada oscilada de seu corpinho, aquela pontada de susto:
— Vai cair!
Mas, ele não cai.
Ela ainda tem tempo de ver, antes de entrar para casa, o moleque passar pelo filho da vizinha, do mesmo tamanho e da mesma idade que ele, e dar-lhe um empurrão que o põe por terra, aos berros. O nosso pequeno santinho não se abala, mal olha para trás e segue em sua ruidosa carreira.
— Que bruto! — pensa a mãe, não sem uma ponta de orgulho — Eta, machinho...!
Resolve começar a arrumação pelo quarto do príncipe.
Quarta-feira, dia de limpeza mais funda, inicia pelos brinquedos.
Não há um só inteiro, nem para remédio.
Os novos já se encontram reduzidos a cacos e os velhos então, simplesmente não se consegue distinguir o que é que tinham sido quando novos.
— Porque será que ele quebra tanto os brinquedos? — pensa ela, desolada, enquanto arruma em uma cesta de vime um resto de avião ao lado dos escombros de um navio e uma sucata de caminhão.
Num canto do quarto, ao lado de uma pilha de revistinhas rasgadas, um exército de formigas disputa uma bala meio usada e que fora escondida para dias mais difíceis e, como provavelmente esse dia jamais chegara, a tal bala fora esquecida. Um dos cachimbos do pai — justamente aquele que ele procurara durante o fim-de-semana inteiro — se encontra dentro da caçamba de uma camioneta de plástico, cheio de terra.
— Meu Deus! Nem quero pensar no que ele vai dizer!
Guardando o cachimbo do marido, murmura:
— Nem parece que eu arrumei tudo isto ontem!
Não se sabe por que, ao acordar, o moleque tinha procurado sozinho as suas roupas e o resultado foi exatamente o que se poderia esperar: todas as gavetas vazias e todas as roupas no chão, devidamente pisadas e sujas.
Uma a uma, as peças que podem ser salvas de ir para a lavanderia, são sacudidas, dobradas e guardadas. Os brinquedos são arrumados na cesta, a bala cheia de formigas bem como toda a sujeira reinante , vão para o lixo, a cama é esticada, o chão é varrido.
Tudo está em ordem, bonito, limpinho.
A mãe olha sua obra, respira, sente-se satisfeita consigo mesma e vai pegar um bem merecido café e um cigarro.
Não chega nem mesmo a acendê-lo.
Uma correria, um barulho infernal: passa o cachorro rebocando, grudado em seu rabo, o menino, acompanhado da pagem, tudo isso em meio a gritaria, ganidos, objetos caindo no chão e arrastar de sapatos.
O caos se estabelece novamente.
Todos estão no quarto do moleque, sobre a cama, dentro da cesta.
O episódio não demora mais do que dois ou três segundos.
Quando a mãe reage, derramando o café no tapete, queimando-se com o fósforo e saindo atrás da turba, ela também, para o quarto do pequeno Satanás, a cena que aparece aos seus olhos é simplesmente aterradora. Sua vontade é de chorar, de deitar no chão e bater mãos e pés em absoluto desespero.
O moleque está coberto de barro, bem como o cachorro.
A cesta de brinquedos está virada e não há um só centímetro quadrado de chão no quarto que não tenha um resto de brinquedo e um tanto de lama.
Os dois, cachorro e menino, estão sobre a cama depois de, com a entrada triunfante quarto adentro, terem derrubado a cômoda de vime com todas as gavetas abertas e as roupas devidamente espalhadas.
Porém, o mais desesperador era ver, por sobre tudo isso, o olhar inteligente da Margueritte Yourcenar e os abanos simpáticos da cauda do cão.
publicado por Jose Alpoim às 07:59
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Quarta-feira, 6 de Dezembro de 2006

Vivendo o inferno

Alguém disse que Deus é brasileiro. Creio que há um engano por aí... Mais provável que Deus seja mesmo um grande gozador. Ou, então, deixou-se contaminar pelo espírito dos nossos homens públicos e acabou se tornando um mau brasileiro. Tenho comigo que essa é a hipótese mais provável. Deus é brasileiro, sim. Mas acabou por virar “brasileiro” demais. Quem sabe, até tenha aderido ao PT... Nosso pobre e abandonado país vive o caos na infraestrutura: transporte aéreo parado, estradas ruins/péssimas, portos sucateados, transporte ferroviário inexistente, transporte hidroviário (mas o que é isso?) inominável, saúde pública sem comentários (e o nosso Lulinha diz que está beirando a perfeição!), a educação que não educa ninguém (viva Paulo Freire!), a segurança que não existe, os impostos exorbitantes, os políticos fazendo o que querem e impunes, o salário mínimo continuando a ser uma vergonha (enquanto os “big-shots” do Planalto Central determinam salários para eles mesmos que tocam as raias do exorbitante), o Ministro da Defesa que se transformou em técnico de esconder o sol com uma peneira, os comandantes das Forças Armadas – especialmente da Aeronáutica – completamente desautorizados, o MST e similares invadindo fazendas produtivas e alegando que é uma forma de protesto contra a lentidão da reforma agrária, a Copa que perdemos... e muitas outras facetas da vida que nos leva seriamente a pensar em reformular a frase inicial: se Deus é brasileiro, então não dá para entender mais nada.

Está certo, a economia parece que anda bem. No fundo, o medo: será que isso é só aparência? Será que, de um momento para o outro a “coisa” não vai esboroar?

Está na hora de o povo brasileiro abrir os olhos. Não se trata de pregar uma revolução. O brasileiro de hoje não é disso, nem sabe o que é isso, principalmente porque desde há pouco mais de vinte anos – uma geração inteira! – vem sendo incutida na mente de todos o “sentimento democrático”, a “obrigação constitucional”, o “civilismo” (não a civilidade, vejam bem!) e o repúdio ao passado político (entenda-se o período de 1964 a 1985). Os nossos estudantes não têm preparo político (nem mesmo instrucional) para levantar a voz e protestar como se deve. Eles não têm nem mesmo idéia de sobre o que protestar. Aliás, o que tem acontecido é exatamente isso e protesto brasileiro acaba virando samba, com trio-elétrico e tudo o mais. E isso vem de longe, para consolo do governo atual, vem desde o governo FHC, com os protestos contra as privatizações. Lembro bem que perguntei a um manifestante na Avenida Paulista a razão de todo aquele protesto e ouvi como resposta que ele não sabia, mas estava ali porque o tinham mandado participar. Admirado com o que ele me falou, perguntei a vários outros. As respostas variaram, houve até quem esboçasse uma explicação de que era contra se vender o país para estrangeiros e houve uma moça que disse estar protestando contra a venda da Amazônia para os japoneses...

Disse que o povo deveria abrir os olhos. Não foi o que aconteceu na última eleição. Não apenas o presidente manteve o cargo, mas inúmeros outros políticos permaneceram, impunes ou apenas aguardando a impunidade.

É hora de renovar. E é mais do que hora de o presidente reeleito, este sim mais do que qualquer outro brasileiro, abrir os olhos e os ouvidos e começar a demitir. Deixar um pouco de lado suas metáforas futebolísticas – não se pode tomar como modelo o futebol para dirigir um país, essa história de “em time vencedor não se mexe”, mesmo porque o nosso time parreirense não conseguiu nada, portanto não é vencedor de coisa nenhuma – e passar a agir com menos autoritarismo e mais... democracia. Ou será que ele também vai aderir à idéia satânica de Chávez e instituir aqui a reeleição por tempo indefinido?

Sim, o presidente precisaria começar a demitir seu primeiro escalão. Se ele fizesse uma filtragem honesta – coisa difícil, hem? – certamente veria que seus ministros estão muito aquém das exigências mínimas do país. Se houvesse brasilidade – leia-se patriotismo – lá no Planalto Central, não haveria “negociação” para os Ministérios e muito menos a criação de novas pastas só para atender as composições políticas. Ministérios deveriam ser chefiados por técnicos, especialmente as pastas eminentemente técnicas.

Com tudo isso, nosso pobre Brasil está vivendo um inferno. E a tendência, pelo visto, é piorar.

Mas há saída. E ela está em nós, brasileiros ainda não contaminados. Precisamos reagir, gritar, espernear... Sobretudo, precisamos pensar na hora de votar.

Precisamos, simplesmente renovar. Ou forçar a renovação.

E esquecer essa história de que Deus é brasileiro, nada nos faltará.

Se olharmos bem, veremos que tudo está faltando. Principalmente vergonha na cara.

publicado por Jose Alpoim às 05:46
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